DOI:
https://doi.org/10.14483/25909398.13673Publicado:
2017-01-02Número:
Vol. 4 Núm. 4 (2017): Enero-Diciembre de 2017Sección:
Sección CentralOração de um nenhum a Nossa Senhora dos Desvalidos
Prayer of a no to Our Lady of the Underprivileged
Oración de nadie a Nuestra Señora de los desfavorecidos
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Oração de um nenhum a Nossa Senhora dos Desvalidos
Texto literario
Profesor del Departamento de Psicología del Programa
Luis Antônio Baptista
Universidad Federal Fluminense, Brasil.de Posgrado en Psicología de la Universidad Federal Fluminense, Brasil.
Doctor en Psicología Social de la Universidad de São Pablo, Pos-Doctorado en Sociología de la Universidad de Roma La Sapienza.
É a primeira vez que rezo para uma santa que não gosto do nome. Não sou desvalida, excluída, carente, fudida ou qualquer coisa semelhante, mas estou precisando da sua ajuda. Melissa me indicou a senhora para esta súplica; é a minha última tentativa. Estou cansada, dona santa. Era devota de São Jorge, mas perdi a devoção. O santo guerreiro não existe mais na minha vida, depois lhe explico. Após o que aconteceu comigo detesto os guerreiros. Minha fé a cada dia que passa vai para o ralo. Grana, saúde, amor nada disso me interessa; o meu pedido a senhora é outro. Não sou feliz, infeliz, não busco ou procuro nada, sou uma insistente. Meu pedido é fruto de uma raiva incontrolável, depois também lhe explico. Deixei a rua, me aposentei da Lapa velha de guerra. Conheci Melissa nas calçadas da Mem de Sá. Sou manicure. Tenho um companheiro, trabalho, gosto de viver. O meu problema não é a falta de algo, é de excesso.
Tenho um cansaço por carregar nos ombros o peso de predestinações que não escolhi. Não é mole não, dona santa. Muito nome, muita identidade, muito significado, muita história mal contada sobre este corpo surrado de tanta esquina. Melissa me disse que a senhora escuta os esquecidos pelos outros santos. Tentarei pela última vez. O meu pedido é estranho; os seus companheiros do além só atendem aos que exibem a fome de alguma coisa. Não tenho fome de nada; se tenho não a exibo, vou à luta. Nossa Senhora dos Desvalidos, desesperadamente eu quero ser um nenhum. Mesmo desgostando do seu nome rogo à senhora para ser uma, ou um, inclassificável nenhum. Ontem fui ao posto médico doar sangue para uma antiga colega de calçada. Pegaram a bicha, deram tanta porrada no meio da rua que ela quase morreu. Precisava com urgência de sangue. No posto me informaram que o meu não prestava. Na portaria o cartaz dizia que homossexual masculino não poderia doar. Homossexual é o caralho.!!! Santa dos Desvalidos, dos desclassificados, dos descamisados, dos desgraçados, desculpe mais uma vez o palavrão, mas saí puta daquele lugar. O meu corpo gasto, com este silicone vencido nos seios e esta tripa dependurada ainda vive. Meu sangue não tem nome. A única coisa que ele tem, além daquilo que eu como e bebo, é o que me faz insistir em viver. Vida, para certas pessoas, é insistência. Melissa me chamou de burra, de desinformada. Segundo ela, no programa de uma mulher que conversa com o papagaio, foi informado que nós não poderíamos doar. 1Depois da minha aposentadoria faço o exame com frequência, não tenho nada. Por que esta ciência de merda tenta insultar o meu corpo? O sangue de todos os doadores é testado após a doação, por que não o meu? Nos meados dos anos setenta tinha dezoitos anos e trabalhava na Rua do Riachuelo. Certa madrugada recusei dar dinheiro a um policial dono do pedaço e fui parar na delegacia. O cara enfiou um cabo de vassoura no meu rabo e depois me deu um pedaço de papel higiênico para me limpar. O cana sorria dizendo com a voz doce que eu era uma guerreira.
Detesto esta palavra até hoje. Na mão do torturador o anel com São Jorge assistia calado. Perdi a fé neste santo. Na delegacia sentenciaram que meu corpo era um insulto; no posto de saúde insultaram o meu corpo e apodreceram o meu sangue. Aliás, Santa dos Desgraçados, o cabo de vassoura entrou no rabo dos travestis vivos e mortos. Não gemi de dor sozinha. A dor que senti foi, e ainda é de muita gente. Minha avó dizia que as artistas do passado tinham carteirinha da saúde pública para controlar a transmissão da gonorréia. Artista mulher e puta eram um risco à saúde. Que medicina é esta, santa dos infames, onde no posto de saúde o usuário morre como barata? Será que esta gente de branco sabe a história do sangue da gente fudida desta cidade? Um cliente do passado, professor em São Paulo, me disse que o sangue tem história; na época não entendi, mas cada dia que passa fica mais claro. Aprendi com meu corpo.
Melissa acredita que temos uma alma de travesti, de viado, de bicha, de gay, de homossexual; ela não perde o programa da mulher que conversa com o papagaio; repete sem pensar o que assiste na TV. Outro dia assistiu no programa que gay não é opção e sim orientação; perguntou se eu concordava, desejava saber a minha resposta. Mandei ela ir à merda. Não respondi e não responderei perguntas que já trazem a resposta. Aprendi esta recusa nas delegacias, com os clientes anônimos, na noite e com a noite. É, dona santa, a noite esculhamba muitas verdades. A rua me ensinou que os nomes servem para o combate e para sonhar; depois da luta, do sonho ou do prazer, seguimos em frente, esquecemos o que éramos porque o buraco é mais em baixo. O nós se desfaz até a próxima luta. Levei e dei muita porrada nas calçadas, gritei muito que era viado e daí, vai encarar, mas depois em casa a vida me cutucava, me atrapalhava, e eu esquecia o que me definia. A cutucada da vida me desfazia como uma dádiva inesperada. O espelho nunca me deu sossego. Era uma benção sem deus este esquecimento. Moro em um conjugado no edifício Balança Mas Não Cai, próximo da Central do Brasil. Meu namorado é camelô da Rua Uruguaiana; apesar dos dez anos de casamento só transo com camisinha. Insisto na luta e no sonho. O desassossego do espelho é minha outra benção. Apesar da idade não tenho a arrogância dos guerreiros ou a vaidade dos vencidos. No passado queria ser astronauta, depois Ângela Maria, agora insisto. Alguma coisa deve acontecer. Não espero o acontecimento, deixo ele entrar. Não sou uma morta viva, apesar de tudo.
Não sobrevivo. Insistência é o que sou. A noite me ensinou que saúde e vida não são a mesma coisa. Santa dos Desvalidos, a senhora deve estar curiosa para saber o porquê do meu desejo de ser um nenhum. A raiva me desorienta, me faz falar sem parar. Estou cansada. Tem dia que dá vontade de desistir. Insistir, no meio de tanto assassinato de gente que teima em viver, não é fácil. A antiga colega agredida narua ficou cega. Os filhos da puta quebraram uma lâmpada no rosto dela. Em São Paulo fizeram a mesma coisa com um rapaz. Quando vi esta cena na televisão lembrei do professor, o meu cliente. O sangue tem história; a fúria ou a indiferença também. Ele dizia isto rindo quando me via triste. Às vezes o nó custa a se desfazer e o espelho reflete uma única imagem. Nestes momentos a gente corre o risco de ser reduzida a ressentidos sobreviventes Isto é a morte. Melissa adora as psicólogas que aparecem na televisão propondo o respeito à diferença, aquelas mulheres com voz de freira, ou psicólogos com voz de padre, denunciando o preconceito. Me dá vontade de quebrar a televisão quando escuto estas baboseiras. Por que o respeito? Que diferença? O preconceito acaba, e daí? O que quer esse pessoal que confunde vida com saúde? Melissa não aprendeu com a noite. Não sou diferente, insisto cada vez mais em ser um nenhum. O nó às vezes custa a se desfazer, a vida demora a esculhambar as historinhas que nos fazem engolir. Estou cansada, santa dos que não acreditam nos santos. Detesto pastores, professores, delegados, psicólogos, filósofos e toda esta gente que não sabe me dizer para que serve a liberdade. O vizinho do apartamento 511 sem saber me salvou.
Ele é um homem calado, de pouca conversa, mas quando bebe umas cervejinhas adora contar histórias. Soube que meu pai nasceu no sertão de Minas Gerais e me contou uma história que não consigo esquecer. Toda sexta-feira ele está no pé sujo em baixo do prédio. Não sei o seu nome e nem o que ele faz, mas sei que é poeta. Em uma destas noites ele me falou sobre um conto passado em uma cidade pequena de Minas. Um homem de braço com duas mulheres sofria na caminhada; ia da casa ao trem que levaria sua mãe e sua filha para o hospício de Barbacena. Elas partiam para nunca mais voltar. O homem chamava-se Sorôco, um brutalhudo de corpo, voz grossa, que em seguida afinava. A mãe de preto, segundo o poeta, batia a cabeça nos docementes. A filha, também segundo o poeta, punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates. Usava uma carapuça com panos e papéis de diversas cores. A travessia era uma tristeza. O povo da cidade assistia com respeito à caminhada dos três em direção ao comboio. Todos da cidade gostavam muito de Sorôco. A filha de repente começou a cantar. Santa dos Desvalidos, o vizinho poeta descrevia este canto com brilho nos olhos, para ele a moça cantava levantando os braços e a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no dizer das palavras. Era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência. A mulher com os olhos dos espantados cantava o nenhum. A mãe repetia o canto da filha, sem tom, sem jurisprudência ou palavra certa. O trem apitou e as duas partiram para Barbacena.
O final da história, dona santa, reproduzo as palavras do poeta: Sorôco estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Num rompido ele começou a cantar, alteado, forte, era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tinham cantado. Cantava continuando. Continuava o nenhum. E foi sem combinação, todos caminhando com ele cantavam a mesma música. Todos da cidade levavam Sorôco para casa, iam até onde que ia aquela cantiga.2 O nenhum transtornava as fronteiras de todos. Santa dos infames rogo a senhora ser esta canção.
1 O programa citado transmitido em 10/11/2011 pode ser assistido neste endereçohttp://www.youtube.com/watch?v=iiP4dnZRKhc
2 Rosa, Guimarães .Sorôco, sua mãe, sua filha. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.