DOI:
https://doi.org/10.14483/25909398.20244Publicado:
2023-02-15Número:
Vol. 9 Núm. 9 (2022): Enero-Diciembre 2022Sección:
Sección CentralCreer en el poder del cuerpo aunque sea a la distancia: apuntes de un curso sobre corporalidad en la pandemia
Believing in the power of the body even from the distance: notes from a course on corporality in the pandemic
Acreditando na potência do corpo mesmo à distância: notas de um curso sobre corporalidade na pandemia
Palabras clave:
Formación docente, corporalidad, pandemia (es).Palabras clave:
Teacher education, corporality, pandemic (en).Palabras clave:
Formação de professores, corporalidade, pandemia (pt).Referencias
Bachelard, G. (1993). A poética do espaço. São Paulo:Martins Fontes.
Barcellos, M. J. (2019). Onde está o corpo na sala de aula? Monografia de Conclusão de Curso, Graduação em Pedagogia, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
Barcellos, M. J. (2020). O Lugar das Incertezas. Niterói (RJ). Nome Próprio.
Barros, M. (2010). Poesía Completa. São Paulo: Leya.
Bernardi, A. (2019). Lab corpo palavra: corpo que escreve corpo e o artista cartógrafo. Monografia de Conclusão de Curso, Pós-Graduação Lato Sensu em Preparação Corporal nas Artes Cênicas, Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro.
Collet. C. (2020). Bordar a academia: antropologia, estética e saber do corpo. En: Veiga, Ana. Anais do I Congresso Artes-manuais na academia. São Paulo.
Esteban, M. e Zaccur, E. (ogs.) (2002). Professora-pesquisadora- uma práxis em construção. Rio de Janeiro:DP&A.
Rufino, L. e Simas, L. (2018). Fogo no mato: a ciencia encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Morula.
Cómo citar
APA
ACM
ACS
ABNT
Chicago
Harvard
IEEE
MLA
Turabian
Vancouver
Descargar cita
Creer en el poder del cuerpo aunque sea a la distancia: apuntes de un curso sobre corporalidad en la pandemia
Acreditando na potência do corpo mesmo à distância: notas de um curso sobre corporalidade na pandemia
Believing in the power of the body even from the distance: notes from a course on corporality in the pandemic
Recepción: 14 Septiembre 2021
Aprobación: 29 Mayo 2022
Resumen: Nuestro trabajo es parte del proyecto de investigación “Antropología y educación intercorporal” desarrollado desde 2018 en la Facultad de Educación de la Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Compartiremos nuestra experiencia en la disciplina “Antropología a través del cuerpo” impartida para el curso de Pedagogía, de septiembre a diciembre de 2020. El curso fue diseñado originalmente para ser realizado de manera presencial, sin embargo, con la pandemia se realizó a través de plataformas digitales. ¿Cómo hacer un curso a distancia sobre corporeidad? Ésta será una de las cuestiones que abordaremos, junto con la investigación sobre prácticas corporales. Sin embargo, partiendo de la certeza de que la proximidad física entre las personas es fundamental en la educación, buscábamos formas en las que el objetivo del curso de ac- ceder creativamente al cuerpo a través de nuestra investigación pudiera hacerse realidad. Intentamos usar lo que teníamos: acceso a Internet, nuestros cuerpos y la casa. Así, partimos de la idea de ambiente “virtual”, armando una lista de canciones, sugiriendo películas, reportando nuestras investigaciones individuales, fotos de nuestras experiencias y las de otros artistas e indicando redes sociales con interesantes investigaciones sobre corporeidad, a llegar a nuestros cuerpos y en la relación con los de- más cuerpos de la casa. Exploramos, individualmente, pero con reverberación en lo colectivo, cuerpos, objetos, espacio, plantas, niños, comida, bordados, fotografía, escritura. Y, poco a poco, cada alumna encontró un lugar para desarrollar su investigación artístico-antropológica individual. Y luego, en medio de la aridez de la pandemia, surgieron hermosas creaciones y autocreaciones. Hubo mucha sorpresa por parte de algunos estudiantes con el resultado de un proceso educativo y pedagógico que cree en el cuerpo y en el arte como bases para la producción y creación de conocimiento.
Palabras clave: Formación docente, corporalidad, pandemia.
Resumo: Nosso trabalho está inserido no âmbito do projeto de pesquisa “Antropologia e educação entre-corporal” desenvolvido desde 2018 na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Compartilharemos nossa experiência na disciplina “Antropologia através do corpo” oferecida para o curso de Pedagogia, de se- tembro a dezembro de 2020. O curso originalmente foi concebido para ser realizado presencialmente, entretanto, com a pandemia aconteceu através de plataformas digitais. Como fazer um curso sobre corporalidade a distância? Esta será uma das questões que trataremos, juntamente com as pesquisas sobre práticas corporais. Partindo da certeza de que a proximidade física entre as pessoas é fundamen- tal na educação, fomos buscando, entretanto, formas para que o objetivo do curso de acessarmos criativamente o corpo através de nossas pesquisas pudesse se concretizar. Procuramos usar o que tín- hamos: o acesso a internet, nossos corpos e a casa. Assim, partimos da ideia de ambientação “virtual”, através da montagem de uma lista de músicas, su- gestão de filmes, relato de nossas pesquisas indi- viduais, fotos de experiências nossas e de outros artistas e indicação de redes sociais com pesquisas interessantes sobre corporalidade, para chegarmos aos nossos corpos e na relação com os outros cor- pos na casa. Exploramos, individualmente, mas com a reverberação no coletivo, os corpos, os objetos, o espaço, as plantas, as crianças, as comidas, o borda- do, a fotografia, a escrita. E, aos poucos, cada aluna foi encontrando um lugar para desenvolver sua pes- quisa artística-antropológica individual. E então, em meio à aridez da pandemia surgiram lindas criações e autocriações. Houve muita surpresa por parte dealgumas alunas com o resultado de um processo educacional e pedagógico que acredita no corpo e na arte como bases para a produção e criação de conhecimento.
Palavras-chave: Formação de professores, corporalidade, pandemia.
Abstract: Our work is part of the research project “Anthropo- logy and inter-corporal education” developed since 2018 at the Faculty of Education of the Universida- de Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. We will share our experience in the discipline “Anthro- pology through the body” offered for the Pedagogy course, from September to December 2020. The course was originally designed to be held in person, however, with the pandemic it took place through digital platforms. How to take a distance course on corporeality? This will be one of the questions we will deal with, along with the research on bo- dily practices. Based on the certainty that physical proximity between people is fundamental in edu- cation, we were looking, however, for ways that the course’s objective of creatively accessing the body through our research could come true. We tried to use what we had: internet access, our bodies and the house. Thus, we started from the idea of “vir- tual” ambiance, by putting together a list of songs,suggesting films, reporting our individual research, photos of our experiences and those of other artists and indicating social network with interesting re- search on corporeality, to reaching our bodies and in the relationship with the other bodies in the hou- se. We explore, individually, but with reverberation in the collective, bodies, objects, space, plants, chil- dren, food, embroidery, photography, writing. And, little by little, each student found a place to develop her individual artistic-anthropological research. And then, amidst the aridity of the pandemic, beautiful creations and self-creations emerged. There was a lot of surprise on the part of some students with the result of an educational and pedagogical process that believes in the body and in art as bases for the production and creation of knowledge.
Keywords: Teacher education, corporality, pandemic.
O encontro de nossos corpos
Neste trabalho contaremos a experiência ocorrida no curso “Antropologia Através do corpo” realizado na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro, Brasil) entre os meses de setembro e novembro de 2020.
A partir da política de cotas no ensino superior, aumentou a diversidade de pensamentos no espaço universitário. Entretanto, podemos observar que esses pensamentos ainda não ganharam espaço na academia, e continuam sendo subjugados ao pensamento ocidental homogeneizante. Este último, característico da modernidade, é baseado na ideia cartesiana de separação e dominação da mente so- bre o corpo. Ora, a diversidade de pensamentos que chegam à universidade, seja através de indígenas, quilombolas, camponeses, pessoas trans, pessoasde tradições de matriz africanas, são por definição extra modernos, não hegemônicos, e por tanto, não embasados sobre os pressupostos cartesianos. Neles podemos notar o pensamento corporificado, e não apenas baseado em ideias, imagens e conceitos mentais.
Esse curso foi resultado do entrelaçamento de dois projetos de pesquisa. Um deles coordenado por Celia Collet, “Antropologia e educação entre-cor- poral”, é desenvolvido desde 2018 na Universidade Federal Fluminense. Ele tem como objetivo pesqui- sar a experiência do “pensamento praticado” (Ru- fino; Simas, 2018) dentro do ambiente acadêmico. Este projeto de pesquisa trata de experienciarmos um pensamento em que esteja presente o corpo. Realizamos práticas de investigação tanto nas disciplinas do curso de pedagogia quanto no projeto de extensão “Experiências em antropologia, arte, entre-corporalidade e educação”, inspirado princi- palmente no método Angel Vianna e no Teatro do Oprimido.
Paralelamente, o projeto desenvolvido por Marcella Jasmim Barcellos, no período da graduação em Pedagogia, para a pesquisa monográfica intitulada “Onde está o corpo na sala de aula?” (Barcellos, 2019) entre 2018 e 2019 marca seus estudos sobre o corpo. Este trabalho possibilitou uma reflexão so- bre os corpos docentes e discentes em sala de aula, bem como direcionou as bases de uma nova relação entre a autora e seu próprio corpo/vida. Desde então, a pesquisadora segue alinhavando as relações entre corpo, arte e formação de professoras tendo como referência os trabalhos de Lygia Clark e o pensamento das professoras Maria Teresa Esteban eEdwiges Zaccur (Esteban; Zaccur, 2002) para a formação de professoras-pesquisadoras.
A partir do encontro entre as duas pesquisadoras, num momento de grande efervescência para ambas, idealizamos nosso curso.
Corpo na tela é corpo?
A princípio, o curso estava previsto para acontecer no modo que (agora) chamamos de presencial. Havíamos pensado em realizar práticas corporais como continuidade de nossa investigação do pen- samento corporal em espaços educacionais. Entretanto, com a pandemia, tivemos que adaptá-lo para o chamado “modo remoto”. Como fazer um curso sobre corporalidade à distância? Sem a proximidade dos corpos? Seria possível?
Tivemos que lidar com o desafio, mesmo sem saber como seria. O pensamento corporal que já praticávamos nos levou a criar um ambiente de trocas e aprendizagens mesmo sem o contato corporal com a turma.
É importante frisar que o fato dessa experiência ter sido enriquecedora para todas, não nos faz acreditar que a presença corporal possa ser substituída pela comunicação à distância através de meios digitais. Vamos contar a história de uma excepcio- nalidade, que só pode ser criada pela ativação do pensamento praticado já experimentado pelas professoras antes da pandemia.
Reiteramos a importância da proximidade dos corpos, da experiência sensorial onde é imprescindível o toque, os cheiros, as pequenas percepções cor-porais, o corpo coletivo, a relação com o espaço da universidade. Foi esse aprendizado anterior que nos permitiu ter corpo e fluidez para fazermos nossas experiências mesmo à distância, incentivando as alunas a explorarem os corpos presentes em seus lares, sejam os seus próprios, os de outras pessoas ou o corpo-casa.
Praticamos uma metodologia que somente agora, que olhamos para trás e vemos o processo pelo qual passamos, podemos identificar, e percebê-la como fruto de nossas experimentações corporais prévias. Estando atentas aos nossos corpos, pudemos acompanhar as alunas na experiência de tam- bém se aproximarem de seus corpos e dos corpos com os quais tinham contato. Pudemos confiar no acontecimento como lugar da aprendizagem, deixando o grupo e o processo guiarem nossas prá- ticas. Pudemos estar sensíveis ao momento extre- mamente difícil pelo qual passávamos, e, ao mesmo tempo, nos colocarmos ativa e criativamente frente a ele. Pudemos fazer um corpo coletivo mesmo à distância. Pudemos praticar a função de professor como mediador, e não como transmissor de conhe- cimento. Pudemos também desenvolver a criação e o aprendizado com as pesquisas individuais e cole- tivas, através de alinhavos entre pesquisa e prática, experiência e corporeidade.
Praticamos uma metodologia que somente agora, que olhamos para trás e vemos o processo pelo qual passamos, podemos identificar, e percebê-la como fruto de nossas experimentações corporais prévias. Estando atentas aos nossos corpos, pude- mos acompanhar as alunas na experiência de tam- bém se aproximarem de seus corpos e dos corpos com os quais tinham contato. Pudemos confiar no acontecimento como lugar da aprendizagem, deixando o grupo e o processo guiarem nossas prá- ticas. Pudemos estar sensíveis ao momento extre- mamente difícil pelo qual passávamos, e, ao mesmo tempo, nos colocarmos ativa e criativamente frente a ele. Pudemos fazer um corpo coletivo mesmo à distância. Pudemos praticar a função de professor como mediador, e não como transmissor de conhe- cimento. Pudemos também desenvolver a criação e o aprendizado com as pesquisas individuais e cole- tivas, através de alinhavos entre pesquisa e prática, experiência e corporeidade.
A oportunidade de nos enxergarmos como sujeitas inteiras e ativas em nossas realidades possibilitou que, mesmo a distância, pudéssemos construir uma rede que até o momento só tínhamos experimentado presencialmente. Sendo possível acessar os cor- pos mesmo com a mediação das telas.
Ambientação
Como ponto de partida para o trabalho foi importante acolhermos nossa realidade. Estávamos todas em casa há muitos meses. Pensamos, então, em trazer o espaço da casa e seus corpos para a expe- riência do curso. Logo surgiu a ideia de colocarmos nossas experiências em paralelo com a leitura em voz alta do livro “A poética do espaço” de Bachelard (1993), principalmente nas partes em que trata di- retamente da casa. Como veremos a seguir, essa interação trouxe muita experimentação, com as plantas, bichos, alimentos, janelas, crianças e objetos.
Envolver nossas alunas e suas questões foi um gesto de cuidado, tanto com elas quanto conosco, nos alimentando dessas presenças para seguir caminhando com nossas pesquisas. Assim, convidamos as famílias para participarem, principalmente as crianças, que naquele momento, pela ausência das atividades presenciais das escolas, dividiam o espaço com suas mães. Tivemos, de fato, duas alunas que eram mães e estavam com seus filhos durante as aulas, os quais apareciam na tela, falavam, cantavam. Às vezes as alunas tinham que se ausentar para cuidar deles e depois retornar. Isso tudo não era visto como “atrapalhando a aula”. Mas a aula era exatamente isso: como viver e aprender a partir de onde estamos, do que temos, de quem está conosco. Nada estava fora. Tudo era meio de aprendizagem.
Nos acostumamos na educação moderna a construir o espaço da aula em oposição ao mundo “lá fora”, de modo que os acontecimentos da vida privada não invadam o espaço público da escola ou universidade. Na conjuntura em que estávamos
tendo aula “dentro” de nossas casas, aproveitamos para afirmar uma educação-no-mundo, e resolvemos trazer o “mundo real” para nossas experiências de aprendizagem. Uma escolha que possibilitou aproximar questões subjetivas de questões sociais.
Outra realidade que aceitamos e trouxemos a nosso favor foram as mídias digitais. Montamos uma lista de músicas que interagiam com nosso trabalho 1, reunimos perfis no Instagram e em outras redes sociais afins com nossa pesquisa, selecionamos vídeos e filmes que pudessem ativar essas presenças. Essas mídias foram disponibilizadas no início do curso e foram fomentadas com a troca que aconteceu durante todo o semestre.
Chamamos a esta pesquisa digital realizada antes e durante o curso de “ambientação”. Nesta pedagogia em que partimos da experiência e do acontecimento é importante um ambiente propício à criação, à investigação, à sensibilização e à presença. Usamos aquilo que a princípio pressuporia distância como instrumento de aproximação, uma das outras e de nós mesmas.
Metodologia
Construímos um contexto em que usamos a pesqui- sa como processo de aprendizagem, como forma de conhecer-criar. A ideia era que no decorrer do semestre cada aluna pudesse desenvolver uma pes- quisa que fosse do seu interesse naquele momento. Talvez a pesquisa-arte pudesse nos ajudar a digerir tudo o que estávamos vivendo naquele período. Talvez ela pudesse criar um deslocamento de uma perspectiva única, muitas vezes vinda de fora, de outros. E esse deslocamento, além de nos levar ao lugar intenso da criação, poderia criar um território que nos sustentasse em uma realidade tão árida, tão incerta, tão dolorida.
Outra característica importante do processo foi a prática das “sensibilizações” que fazíamos no início das aulas, e que se tornaram cada vez mais impor- tantes para a fruição delas. Essas sensibilizações foram tomando espaço próprio, ao passo que, ao convocar o corpo, a atenção para nossos sentidos, para a respiração, para os sons, cores, cheiros e sensações, criamos espaços para, de fato, nossos corpos sentirem, pensarem e agirem nas propostas que viriam após esse primeiro momento do encontro.Fizemos um grupo no WhatsApp para nos acom- panharmos entre as aulas síncronas e assíncronas.
Ali compartilhamos as reverberações de nossos encontros, conversas e experiências conjuntas, através de fotos, escritos, apresentação de nossas artes, escritas sobre o que estávamos fazendo e sobre como o curso estava cruzando nossas vidas, nossas relações e nossas casas. A partir deste grupo propusemos que as leituras teóricas e poéticas fossem feitas de forma compartilhada por meio de áudios gravados e enviados a todas do grupo.As alunas vinham de períodos diferentes da faculdade. Algumas já nos conheciam e a nosso trabalho, outras não. A turma e o curso são como um organismo vivo, e foi com essa organicidade que fomos esquentando nossos encontros até chegarmos às nossas criações individuais e coletivas.
Encontros Nosso mosaico
Como nossos corpos chegavam ali depois de tantosmeses de pandemia, em casa, com medo, com insegurança? Como estávamos? Era de onde partiríamos. Era a nossa matéria-prima naquele momento. Como vivenciar arte e criação durante uma pandemia?
Percebemos na primeira aula uma diversidade de sentimentos. Expectativa e alegria, principalmente por parte daquelas que já conheciam nossos trabal- hos de outros cursos. Estranhamento por algumas que chegavam naquele momento a ter contato com nossas práticas.
Em um primeiro momento mostramos objetos, textos e processos artísticos realizados em relação com o espaço da casa, como estímulo à criação duranteo curso. Entre eles chamou muita atenção a obra de Marcella “corpo, natureza e movimento” onde a artista dispõe cascas de bananas de modo que se assemelham a bailarinas no ar.
A obra foi concebida de forma intuitiva. Ao longo de algumas semanas guardei sobre o beiral da janela cascas de bananas sem saber bem o porquê ou o que seria feito. Dessa forma, elas secaram ao sol. Ao retiralas do beiral quase que instantaneamente se abriram em corpos dançantes ao serem colocadas no chão. A partir disso montei composições usando papel pardo reaproveitado como suporte e registrei fotos. (Trecho de conversa do grupo de WhatsApp)
Através de obras de arte como essa, demos início ao exercício de “transver” nosso olhar, atitude que permeia todo o curso e experiências, inspiradas pela prática antropológica e pelo poeta Manoel de Barros:
As lições de R. Q.
Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo. Isto seja:Deus deu a forma.
Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo:Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar.
Até já inventei mulher de 7 peitos para fazer va- ginação comigo.Manoel de Barros (Barros, 2010, p. 350)
Como mostraremos no decorrer deste trabalho, o exercício de transver o olhar fez encontrarmos flores em rolos de papel higiênico, um ônibus em uma caixa, um pulmão num saco de ar, aviões em canetas, mantermos relação pessoal com a batata doce…
Ao falarmos de nossos espaços, quarto, janela, casa, vimos o quanto a ideia de dentro e fora é uma ilusão fabricada pela epistemologia ocidental. Sen- timos o quanto nosso espaço está dentro de nós, tanto como estamos nele. Que não há separação entre sujeito e paisagem, mas um contínuo de re- lações. Propomos algumas atividades a serem ex- perimentadas até o próximo encontro. Uma seria tirar “selfies”, fotografando o espaço da casa, já que o espaço também somos nós. E o resultado foram várias fotos: horta, plantas, cantinhos da casa, rede, varanda, janela, café. Fotos de nós mesmas através do espaço que constituímos e nos constitui.
Encontro corpo e memória
Assistimos o filme “Histórias que só existem quando lembradas” de Julia Murat 2. O filme trata das nossas
Seguindo as questões trazidas pelo filme, nos relatos das alunas apareceram muitos estranhamentos, principalmente sobre o tempo mais lento em que as coisas acontecem no filme. Assim começávamos a entrar em contato com um modo de criação associado aos tempos de infância e a momentos que sentimos passar mais devagar por estarmos tomadas por emoções diversas.
A sensibilidade do filme e a forma artística como foi apresentado também foram importantes para ingressarmos em uma estética menos pop e mais sensível em nossos encontros.
O filme traz uma fotografia mais enquadrada, cenas bem silenciosas, encontros inesperados e persona- gens bem característicos de uma pequena cidade. No encontro subsequente fizemos uma prática em que cada aluna foi convidada a trazer um objetoque estivesse associado a uma memória pessoal.
Ao compartilhar com a turma o que cada uma havia trazido, percebemos objetos e memórias semelhantes. Esses objetos foram fotografias, roupas e acessórios infantis e presentes de alguém especial, desde brinquedos até objetos decorativos.
Transver o olhar: um convite
Nesse encontro propusemos uma pesquisa a partir das manualidades. Iniciamos com uma sensibilização usando o tato, o toque da mão na mão e suas reverberações, até o momento em que nossas mãos pudessem ser outras coisas, exercitando a capacidade de transver.
Pedimos que cada aluna escolhesse um objeto para transformar, e também materiais para fazer intervenções nele.
Inspiradas pelo pintor Magritte na obra “Isso não é um cachimbo” cada uma de nós apresentava o objeto dizendo que ele não era o que parecia e sim outra coisa. De modo que um saco plástico, por exemplo, não fosse mais um saco plástico e sim um pulmão. A partir daí o convite foi intervir nesse novo objeto, de forma mais ou menos radical.
As criações desencadeadas a partir desse encontro realmente nos deslocaram. A começar por um pincel feito com uma caneta e cabelo, onde um objeto utilizado para escrever palavras entra em contato com o corpo (cabelo) e passa a produzir novas formas livres.
Uma aluna, ao se apropriar da dinâmica, transformou rolos de papel higiênico em uma flor para decorar o quarto, usando tesoura e grampeador. Um pente garfo tornou-se uma instalação, onde o aluno alinhavou questões sobre negritude, inter-seccionalidade, estética e política.
Tivemos um quadro feito com um livro de pedagogia da avó, não terminado porque no meio do processo apareceu um violão em que a aluna e o namorado desenharam e o transformaram em um objeto artístico para a parede. Outra aluna produziu um cesto usando jornal, que passou a fazer parte da decoração de seu am- biente de estudos. Ainda, uma aluna produziu uma pintura usando como tinta o sumo da amora.
O corpo das coisas
Em um dos encontros fizemos uma proposição baseada nas obras de Lygia Clark. Ela traz uma provocação muito importante para o campo da arte, torna artistas em propositores e espectadores em agentes ativos para que a obra de arte se realize. Essa provocação é de muita relevância em nosso trabalho, que busca deslocar o corpo e o olhar das professoras em formação. Onde ao se entregarem realmente à experiência seja possível que esta se realize tanto individual, quanto coletivamente.
A proposição que fizemos à turma foi inspirada tam- bém numa experiência com a artista e educadora Virna Vemvenuto e no que Clark chama de “objetos relacionais”, algo que, ao entrarmos em contato pe- los sentidos, passa de um objeto comum a um ob- jeto capaz de despertar sensações e sentimentos. Escolhemos um lençol, ou outro tecido grande, algo que tivéssemos em casa. A partir do toque fomos investigando esse objeto e nos abrindo para esse encontro. Marcella nos guiava ao som de uma música:
Pegue um tecido, lençol, canga… encontre um lugar, uma posição confortável...perceba esse tecido, como objeto, suas funções e atribuições...quando, em que lugares da casa o encontra? Que provocações em seu corpo ele produz? Quais movimentos ele sugere? Perceba outras formas de usá-lo, brinque, explore... esse tecido tem peso, cheiro, tamanho, texturas? Entre em contato com o corpo do objeto. (Fala de Marcella durante a aula)
Em seus relatos, muitas alunas nos disseram que sentiram algo como um abraço, acolhimento, maciez. Se lembraram também de brincadeiras que faziam quando crianças em que, usando o lençol, alcançavam outros mundos na imaginação.
Lab corpo palavra
No encontro seguinte fomos convidadas a partici- par da aula que a professora Olívia Von der Weid e a artista Aline Bernardi iriam realizar no curso de Antropologia. A proposta da aula era baseada no projeto de pesquisa “Lab Corpo Palavra” que Aline
Bernardi vem desenvolvendo a partir de perguntas como:
Qual a implicação do corpo durante o ato de escrever? Como posso atravessar a fronteira entre escrita e movimento, para que a poesia do corpo interfira no fluxo criativo da palavra e a palavra no fluxo poético do movimento? De que maneira “razão” e “sensibilidade” dialogam na construção do corpo-pensamento? (Bernar- di, 2019)
No semestre anterior já havíamos sido convidadas a participar de uma aula conjunta de Olivia e Aline sobre a relação entre escrita e corporalidade. E desta experiência, conforme descreveu Celia Collet (2020), surgiu o exercício de diálogo entre corpo, escrita e bordado, que pode ser novamente vivenciado neste encontro em 2020.
Nesta ocasião, ao nos depararmos com a simul- taneidade entre o movimento do corpo, a escrita convencional e a escrita com agulhas (bordado), houve muito estranhamento, pois muitas de nós estávamos seguindo um caminho mais racional, até o momento em que fomos capturadas pela fruição desejada.
Os corpos, ao fazerem as atividades concomitantemente, não podiam mais ordenálas racionalmente, e então passaram apenas a sentilas, entrando em uma experiência que acontece organicamente.
Marcella, em mais uma conexão entre práticas cor- porais e poesia acontecidas durante o curso, decla- mou sua poesia ao ser tocada por essa atividade.
Desata
Palavras de dedo para desatar o nó da garganta Escrevo como quem dança com o punho
Papel pra mim é testemunho
No descuido digo o que preciso ser Olhando as miudezas do mundo Vejo o não que afirmo no fazer
O sim pro corpo fazendo o próprio bem O sim que eu nunca disse a ninguém Aquele que só cabe a mim
O mistério que me povoa
Quão alto é o salto do eu-mulher Sustento meu teto e meu lamento Sustento os nãos que falo
Eu me coloco em risco Eu que rabisco letras Junto tinta, linha e tecido
Me sustento bem em cima dos pés que carrego Quem vem subindo encontra jardins internos de garota
Não vai embora e se alastra pelo estômago Persegue o título pra escrever sua história Eu que sustento virar a página
Sou por dentro veios de uma velha estrada (Marcella Jasmim Barcellos, p.18, 2020)
Esta prática, mesmo sendo experimentada “on-li- ne”, à distância, teve um efeito muito forte sobre as alunas, que depois o relataram em nossas con- versas no grupo de whatsapp. Falaram de envol- vimento pleno com o tecido, a linha e o papel, da excepcionalidade da vivência, da força do encontro da possibilidade de bordar o mundo.
Pesquisar é criar
O que queremos é isso, que vocês desenvolvam pesquisas em algo que foi ou está sendo despertado em nossos encontros ou que dialogam com eles.
Queridas, durante nossos encontros despertamos algumas temáticas relacionadas a arte, corpo, antropologia e educação. Deste modo,a apresentação final será algo em qualquer lin- guagem (escrita, audiovisual, gráfica, performance...) que articule o que foi despertado em você durante esse tempo. Que questão chamou mais sua atenção, em cima dela é que você vai des- envolver uma pesquisa. Pode ser algo que você já vem estudando... Qualquer dúvida pode falar conosco.
As mensagens acima tratavam, no grupo de What- sApp, sobre a proposta de pesquisa que colocamos para as alunas. Assim, cada uma delas, a partir de seus interesses e dos acontecimentos durante o curso, partiu para uma investigação pessoal em meio ao processo coletivo.
Uma aluna puxou o fio da atividade de dança com o tecido e se conectou com a leveza. O movimento do tecido no ar a levou a bordar em suas saias. Vestir a leveza, levar a leveza. Artistar seus panos como forma de ativar sua potência do leve. O fio se fez tecido, o tecido se fez educação. Ela começou a dar aulas particulares para um menino autista. E conectando nossa experiência com suas aulas, passou a criar materiais artísticos para trabalhar com ele, através do prazer e do contato com a materialidade dos corpos à sua volta. Ela conta que a dúvida que a mãe do menino tinha no início do trabalho, querendo resultados imediatos foi, aos poucos, se transformando em alegria pelas descobertas possibilitadas pelo trabalho sensível.
Outra aluna puxou uma rama da batata doce. Com a proposta de observar os espaços à sua volta, colocou-se em conexão com uma batata-doce que ela havia posto em um recipiente com água em sua janela
Inspirada pela avó, que também estava germinando uma batata-doce. A batata se tornou um ele- mento de conexão entre as duas que estavam sem se ver. Durante o curso ela seguiu com Doralice, o nome que deu à batata, entrando em contato com o cuidar, o conhecimento, o corpo, através desta relação. Registrou seu crescimento em fotos, e segundo ela, renasceu com o renascimento de Doralice.
Leila Alvarenga, em sua pesquisa, transformou nos- so corpo coletivo em literatura de cordel:
Bordadeiras em Flor
(Leila Alvarenga)
Olhe bem, essa menina! Tenho algo a lhe dizer Nos encontros, as palavras, olhos acesos, aber- tos,
Diferentes rostos, diferentes corpos,
O encontro virtual (frenesi tecnológico), virou partilha de afetos
Nestes dias tão custosos, de afastamento e so- lidão,
encontrei nesta tabula imperfeita
Um cantinho de doçura, de afável fruição
Sob a batuta de Celia e Marcella, Falas, sorrisos, danças, movimento O que tava esquecido num canto
Foi repensado, refeito com sentimento
Refazer, repensar, o que está posto
Pois te digo, isto é antropologia através do cor- po!
Um dia era, então, o bordado
Bordar o mundo, bordar tudo, bordar junto. Parece loucura, doidice mesmo!
Mas foram horas de calma,
Teve simples movimento, teve mulher-mãe e seu rebento
Brincando, bordando no preparo do alimento Nestes dias tão confusos, Criamos, construímos um laço, um abraço, um arco florido
que fez florescer, nas conversas, nas leituras, nas trocas ,os sorrisos,
No toque das folhas, no regar
matinal, bordei traços de chuva ,
Escavando a terra ,suavizei humores , espantei as dores,
Sob meu olhar espectral
Minhas mãos retintas, cor de terra, como as da mãe, aqui está minha herança ancestral!
Bordado diferente, inusitado
Bordar pano, papel, corpo, sensação
Que tarefa bonita! Traçados cheios de vida! Que tira a gente do marasmo, reacende a ins- piração
Que tava ali quietinha, escondida, esperando
um não- sei -o -que de emoção
Pra acordar, respirar, e lá vamos nós de novo... recomeçar!
Uma de nossas alunas, que também é mãe, participou da maioria dos encontros com os dois filhos sempre por perto. Essa proximidade das crianças com nosso grupo fez com que ela escolhesse incluílos em sua pesquisa. Seu processo culminou na gravação de um vídeo da confecção de um bolo junto com eles, algo que ela já vinha praticando em casa. Antes de fazer o bolo ela preparou o espaço de modo que as crianças pudessem ter acesso a todo material, ganhando autonomia. O que chamou atenção foi a subversão por parte das crianças no ato, comendo ingredientes, misturando outros. O bolo, ora planejado pela mãe com a receita, se tornou outro bolo na experiência conjunta dos filhos de 5 e 2 anos.
Arte de fiar gente à distância
A proposta do curso era fazermos um percurso cole- tivo, ao mesmo tempo que os projetos individuais.
O processo coletivo foi se realizando nos encontros das aulas síncronas, e nas trocas de mensagens e fotos pelo WhatsApp sobre nossas experiências entre os encontros. Percebemos que a conexão entre o grupo, e de cada uma com a experimentação foi crescendo com o tempo. Começamos com um grupo de alunas que não se conheciam, e depois fomos formando um corpo coletivo.
Referências
Bachelard, G. (1993). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
Barcellos, M. J. (2019). Onde está o corpo na sala de aula? Monografia de Conclusão de Curso, Graduação em Pedagogia, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
Barros, M. (2010). Poesía Completa. São Paulo: Leya.
Bernardi, A. (2019). Lab corpo palavra: corpo que escreve corpo e o artista cartógrafo. Monografia de Conclusão de Curso, Pós-Graduação Lato Sensu em Pre- paração Corporal nas Artes Cênicas, Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro.
Collet. C. (2020). Bordar a academia: antropologia, estética e saber do corpo. En: Veiga, Ana. Anais do I Congresso Artes-manuais na academia. São Paulo.
Esteban, M. e Zaccur, E. (ogs.) (2002). Professora-pes- quisadora - uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A.
Rufino, L. e Simas, L. (2018). Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Morula.
Notas
Recibido: 14 de septiembre de 2021; Aceptado: 29 de mayo de 2022
Resumen
Nuestro trabajo es parte del proyecto de investigación “Antropología y educación intercorporal” desarrollado desde 2018 en la Facultad de Educación de la Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Compartiremos nuestra experiencia en la disciplina “Antropología a través del cuerpo” impartida para el curso de Pedagogía, de septiembre a diciembre de 2020. El curso fue diseñado originalmente para ser realizado de manera presencial, sin embargo, con la pandemia se realizó a través de plataformas digitales. ¿Cómo hacer un curso a distancia sobre corporeidad? Ésta será una de las cuestiones que abordaremos, junto con la investigación sobre prácticas corporales. Sin embargo, partiendo de la certeza de que la proximidad física entre las personas es fundamental en la educación, buscábamos formas en las que el objetivo del curso de ac- ceder creativamente al cuerpo a través de nuestra investigación pudiera hacerse realidad. Intentamos usar lo que teníamos: acceso a Internet, nuestros cuerpos y la casa. Así, partimos de la idea de ambiente “virtual”, armando una lista de canciones, sugiriendo películas, reportando nuestras investigaciones individuales, fotos de nuestras experiencias y las de otros artistas e indicando redes sociales con interesantes investigaciones sobre corporeidad, a llegar a nuestros cuerpos y en la relación con los de- más cuerpos de la casa. Exploramos, individualmente, pero con reverberación en lo colectivo, cuerpos, objetos, espacio, plantas, niños, comida, bordados, fotografía, escritura. Y, poco a poco, cada alumna encontró un lugar para desarrollar su investigación artístico-antropológica individual. Y luego, en medio de la aridez de la pandemia, surgieron hermosas creaciones y autocreaciones. Hubo mucha sorpresa por parte de algunos estudiantes con el resultado de un proceso educativo y pedagógico que cree en el cuerpo y en el arte como bases para la producción y creación de conocimiento.
Palabras clave
Formación docente, corporalidad, pandemia.Resumo
Nosso trabalho está inserido no âmbito do projeto de pesquisa “Antropologia e educação entre-corporal” desenvolvido desde 2018 na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Compartilharemos nossa experiência na disciplina “Antropologia através do corpo” oferecida para o curso de Pedagogia, de se- tembro a dezembro de 2020. O curso originalmente foi concebido para ser realizado presencialmente, entretanto, com a pandemia aconteceu através de plataformas digitais. Como fazer um curso sobre corporalidade a distância? Esta será uma das questões que trataremos, juntamente com as pesquisas sobre práticas corporais. Partindo da certeza de que a proximidade física entre as pessoas é fundamen- tal na educação, fomos buscando, entretanto, formas para que o objetivo do curso de acessarmos criativamente o corpo através de nossas pesquisas pudesse se concretizar. Procuramos usar o que tín- hamos: o acesso a internet, nossos corpos e a casa. Assim, partimos da ideia de ambientação “virtual”, através da montagem de uma lista de músicas, su- gestão de filmes, relato de nossas pesquisas indi- viduais, fotos de experiências nossas e de outros artistas e indicação de redes sociais com pesquisas interessantes sobre corporalidade, para chegarmos aos nossos corpos e na relação com os outros cor- pos na casa. Exploramos, individualmente, mas com a reverberação no coletivo, os corpos, os objetos, o espaço, as plantas, as crianças, as comidas, o borda- do, a fotografia, a escrita. E, aos poucos, cada aluna foi encontrando um lugar para desenvolver sua pes- quisa artística-antropológica individual. E então, em meio à aridez da pandemia surgiram lindas criações e autocriações. Houve muita surpresa por parte dealgumas alunas com o resultado de um processo educacional e pedagógico que acredita no corpo e na arte como bases para a produção e criação de conhecimento.
Palavras-chave
Formação de professores, corporalidade, pandemia.Abstract
Our work is part of the research project “Anthropo- logy and inter-corporal education” developed since 2018 at the Faculty of Education of the Universida- de Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. We will share our experience in the discipline “Anthro- pology through the body” offered for the Pedagogy course, from September to December 2020. The course was originally designed to be held in person, however, with the pandemic it took place through digital platforms. How to take a distance course on corporeality? This will be one of the questions we will deal with, along with the research on bo- dily practices. Based on the certainty that physical proximity between people is fundamental in edu- cation, we were looking, however, for ways that the course’s objective of creatively accessing the body through our research could come true. We tried to use what we had: internet access, our bodies and the house. Thus, we started from the idea of “vir- tual” ambiance, by putting together a list of songs,suggesting films, reporting our individual research, photos of our experiences and those of other artists and indicating social network with interesting re- search on corporeality, to reaching our bodies and in the relationship with the other bodies in the hou- se. We explore, individually, but with reverberation in the collective, bodies, objects, space, plants, chil- dren, food, embroidery, photography, writing. And, little by little, each student found a place to develop her individual artistic-anthropological research. And then, amidst the aridity of the pandemic, beautiful creations and self-creations emerged. There was a lot of surprise on the part of some students with the result of an educational and pedagogical process that believes in the body and in art as bases for the production and creation of knowledge.
Keywords
Teacher education, corporality, pandemic.O encontro de nossos corpos
Neste trabalho contaremos a experiência ocorrida no curso “Antropologia Através do corpo” realizado na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro, Brasil) entre os meses de setembro e novembro de 2020.
A partir da política de cotas no ensino superior, aumentou a diversidade de pensamentos no espaço universitário. Entretanto, podemos observar que esses pensamentos ainda não ganharam espaço na academia, e continuam sendo subjugados ao pensamento ocidental homogeneizante. Este último, característico da modernidade, é baseado na ideia cartesiana de separação e dominação da mente so- bre o corpo. Ora, a diversidade de pensamentos que chegam à universidade, seja através de indígenas, quilombolas, camponeses, pessoas trans, pessoasde tradições de matriz africanas, são por definição extra modernos, não hegemônicos, e por tanto, não embasados sobre os pressupostos cartesianos. Neles podemos notar o pensamento corporificado, e não apenas baseado em ideias, imagens e conceitos mentais.
Esse curso foi resultado do entrelaçamento de dois projetos de pesquisa. Um deles coordenado por Celia Collet, “Antropologia e educação entre-cor- poral”, é desenvolvido desde 2018 na Universidade Federal Fluminense. Ele tem como objetivo pesqui- sar a experiência do “pensamento praticado” (Ru- fino; Simas, 2018) dentro do ambiente acadêmico. Este projeto de pesquisa trata de experienciarmos um pensamento em que esteja presente o corpo. Realizamos práticas de investigação tanto nas disciplinas do curso de pedagogia quanto no projeto de extensão “Experiências em antropologia, arte, entre-corporalidade e educação”, inspirado princi- palmente no método Angel Vianna e no Teatro do Oprimido.
Paralelamente, o projeto desenvolvido por Marcella Jasmim Barcellos, no período da graduação em Pedagogia, para a pesquisa monográfica intitulada “Onde está o corpo na sala de aula?” (Barcellos, 2019) entre 2018 e 2019 marca seus estudos sobre o corpo. Este trabalho possibilitou uma reflexão so- bre os corpos docentes e discentes em sala de aula, bem como direcionou as bases de uma nova relação entre a autora e seu próprio corpo/vida. Desde então, a pesquisadora segue alinhavando as relações entre corpo, arte e formação de professoras tendo como referência os trabalhos de Lygia Clark e o pensamento das professoras Maria Teresa Esteban eEdwiges Zaccur (Esteban; Zaccur, 2002) para a formação de professoras-pesquisadoras.
A partir do encontro entre as duas pesquisadoras, num momento de grande efervescência para ambas, idealizamos nosso curso.
Corpo na tela é corpo?
A princípio, o curso estava previsto para acontecer no modo que (agora) chamamos de presencial. Havíamos pensado em realizar práticas corporais como continuidade de nossa investigação do pen- samento corporal em espaços educacionais. Entretanto, com a pandemia, tivemos que adaptá-lo para o chamado “modo remoto”. Como fazer um curso sobre corporalidade à distância? Sem a proximidade dos corpos? Seria possível?
Tivemos que lidar com o desafio, mesmo sem saber como seria. O pensamento corporal que já praticávamos nos levou a criar um ambiente de trocas e aprendizagens mesmo sem o contato corporal com a turma.
É importante frisar que o fato dessa experiência ter sido enriquecedora para todas, não nos faz acreditar que a presença corporal possa ser substituída pela comunicação à distância através de meios digitais. Vamos contar a história de uma excepcio- nalidade, que só pode ser criada pela ativação do pensamento praticado já experimentado pelas professoras antes da pandemia.
Reiteramos a importância da proximidade dos corpos, da experiência sensorial onde é imprescindível o toque, os cheiros, as pequenas percepções cor-porais, o corpo coletivo, a relação com o espaço da universidade. Foi esse aprendizado anterior que nos permitiu ter corpo e fluidez para fazermos nossas experiências mesmo à distância, incentivando as alunas a explorarem os corpos presentes em seus lares, sejam os seus próprios, os de outras pessoas ou o corpo-casa.
Praticamos uma metodologia que somente agora, que olhamos para trás e vemos o processo pelo qual passamos, podemos identificar, e percebê-la como fruto de nossas experimentações corporais prévias. Estando atentas aos nossos corpos, pudemos acompanhar as alunas na experiência de tam- bém se aproximarem de seus corpos e dos corpos com os quais tinham contato. Pudemos confiar no acontecimento como lugar da aprendizagem, deixando o grupo e o processo guiarem nossas prá- ticas. Pudemos estar sensíveis ao momento extre- mamente difícil pelo qual passávamos, e, ao mesmo tempo, nos colocarmos ativa e criativamente frente a ele. Pudemos fazer um corpo coletivo mesmo à distância. Pudemos praticar a função de professor como mediador, e não como transmissor de conhe- cimento. Pudemos também desenvolver a criação e o aprendizado com as pesquisas individuais e cole- tivas, através de alinhavos entre pesquisa e prática, experiência e corporeidade.
Praticamos uma metodologia que somente agora, que olhamos para trás e vemos o processo pelo qual passamos, podemos identificar, e percebê-la como fruto de nossas experimentações corporais prévias. Estando atentas aos nossos corpos, pude- mos acompanhar as alunas na experiência de tam- bém se aproximarem de seus corpos e dos corpos com os quais tinham contato. Pudemos confiar no acontecimento como lugar da aprendizagem, deixando o grupo e o processo guiarem nossas prá- ticas. Pudemos estar sensíveis ao momento extre- mamente difícil pelo qual passávamos, e, ao mesmo tempo, nos colocarmos ativa e criativamente frente a ele. Pudemos fazer um corpo coletivo mesmo à distância. Pudemos praticar a função de professor como mediador, e não como transmissor de conhe- cimento. Pudemos também desenvolver a criação e o aprendizado com as pesquisas individuais e cole- tivas, através de alinhavos entre pesquisa e prática, experiência e corporeidade.
A oportunidade de nos enxergarmos como sujeitas inteiras e ativas em nossas realidades possibilitou que, mesmo a distância, pudéssemos construir uma rede que até o momento só tínhamos experimentado presencialmente. Sendo possível acessar os cor- pos mesmo com a mediação das telas.
Ambientação
Como ponto de partida para o trabalho foi importante acolhermos nossa realidade. Estávamos todas em casa há muitos meses. Pensamos, então, em trazer o espaço da casa e seus corpos para a expe- riência do curso. Logo surgiu a ideia de colocarmos nossas experiências em paralelo com a leitura em voz alta do livro “A poética do espaço” de Bachelard (1993), principalmente nas partes em que trata di- retamente da casa. Como veremos a seguir, essa interação trouxe muita experimentação, com as plantas, bichos, alimentos, janelas, crianças e objetos.
Envolver nossas alunas e suas questões foi um gesto de cuidado, tanto com elas quanto conosco, nos alimentando dessas presenças para seguir caminhando com nossas pesquisas. Assim, convidamos as famílias para participarem, principalmente as crianças, que naquele momento, pela ausência das atividades presenciais das escolas, dividiam o espaço com suas mães. Tivemos, de fato, duas alunas que eram mães e estavam com seus filhos durante as aulas, os quais apareciam na tela, falavam, cantavam. Às vezes as alunas tinham que se ausentar para cuidar deles e depois retornar. Isso tudo não era visto como “atrapalhando a aula”. Mas a aula era exatamente isso: como viver e aprender a partir de onde estamos, do que temos, de quem está conosco. Nada estava fora. Tudo era meio de aprendizagem.
Nos acostumamos na educação moderna a construir o espaço da aula em oposição ao mundo “lá fora”, de modo que os acontecimentos da vida privada não invadam o espaço público da escola ou universidade. Na conjuntura em que estávamos
tendo aula “dentro” de nossas casas, aproveitamos para afirmar uma educação-no-mundo, e resolvemos trazer o “mundo real” para nossas experiências de aprendizagem. Uma escolha que possibilitou aproximar questões subjetivas de questões sociais.
Outra realidade que aceitamos e trouxemos a nosso favor foram as mídias digitais. Montamos uma lista de músicas que interagiam com nosso trabalho 1 , reunimos perfis no Instagram e em outras redes sociais afins com nossa pesquisa, selecionamos vídeos e filmes que pudessem ativar essas presenças. Essas mídias foram disponibilizadas no início do curso e foram fomentadas com a troca que aconteceu durante todo o semestre.
Chamamos a esta pesquisa digital realizada antes e durante o curso de “ambientação”. Nesta pedagogia em que partimos da experiência e do acontecimento é importante um ambiente propício à criação, à investigação, à sensibilização e à presença. Usamos aquilo que a princípio pressuporia distância como instrumento de aproximação, uma das outras e de nós mesmas.
Metodologia
Construímos um contexto em que usamos a pesqui- sa como processo de aprendizagem, como forma de conhecer-criar. A ideia era que no decorrer do semestre cada aluna pudesse desenvolver uma pes- quisa que fosse do seu interesse naquele momento. Talvez a pesquisa-arte pudesse nos ajudar a digerir tudo o que estávamos vivendo naquele período. Talvez ela pudesse criar um deslocamento de uma perspectiva única, muitas vezes vinda de fora, de outros. E esse deslocamento, além de nos levar ao lugar intenso da criação, poderia criar um território que nos sustentasse em uma realidade tão árida, tão incerta, tão dolorida.
Outra característica importante do processo foi a prática das “sensibilizações” que fazíamos no início das aulas, e que se tornaram cada vez mais impor- tantes para a fruição delas. Essas sensibilizações foram tomando espaço próprio, ao passo que, ao convocar o corpo, a atenção para nossos sentidos, para a respiração, para os sons, cores, cheiros e sensações, criamos espaços para, de fato, nossos corpos sentirem, pensarem e agirem nas propostas que viriam após esse primeiro momento do encontro.Fizemos um grupo no WhatsApp para nos acom- panharmos entre as aulas síncronas e assíncronas.
Ali compartilhamos as reverberações de nossos encontros, conversas e experiências conjuntas, através de fotos, escritos, apresentação de nossas artes, escritas sobre o que estávamos fazendo e sobre como o curso estava cruzando nossas vidas, nossas relações e nossas casas. A partir deste grupo propusemos que as leituras teóricas e poéticas fossem feitas de forma compartilhada por meio de áudios gravados e enviados a todas do grupo.As alunas vinham de períodos diferentes da faculdade. Algumas já nos conheciam e a nosso trabalho, outras não. A turma e o curso são como um organismo vivo, e foi com essa organicidade que fomos esquentando nossos encontros até chegarmos às nossas criações individuais e coletivas.
Encontros Nosso mosaico
Como nossos corpos chegavam ali depois de tantosmeses de pandemia, em casa, com medo, com insegurança? Como estávamos? Era de onde partiríamos. Era a nossa matéria-prima naquele momento. Como vivenciar arte e criação durante uma pandemia?
Percebemos na primeira aula uma diversidade de sentimentos. Expectativa e alegria, principalmente por parte daquelas que já conheciam nossos trabal- hos de outros cursos. Estranhamento por algumas que chegavam naquele momento a ter contato com nossas práticas.
Em um primeiro momento mostramos objetos, textos e processos artísticos realizados em relação com o espaço da casa, como estímulo à criação duranteo curso. Entre eles chamou muita atenção a obra de Marcella “corpo, natureza e movimento” onde a artista dispõe cascas de bananas de modo que se assemelham a bailarinas no ar.
A obra foi concebida de forma intuitiva. Ao longo de algumas semanas guardei sobre o beiral da janela cascas de bananas sem saber bem o porquê ou o que seria feito. Dessa forma, elas secaram ao sol. Ao retiralas do beiral quase que instantaneamente se abriram em corpos dançantes ao serem colocadas no chão. A partir disso montei composições usando papel pardo reaproveitado como suporte e registrei fotos. (Trecho de conversa do grupo de WhatsApp)
Através de obras de arte como essa, demos início ao exercício de “transver” nosso olhar, atitude que permeia todo o curso e experiências, inspiradas pela prática antropológica e pelo poeta Manoel de Barros:
As lições de R. Q.
Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo. Isto seja:Deus deu a forma.
Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo:Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar.
Até já inventei mulher de 7 peitos para fazer va- ginação comigo.Manoel de Barros (Barros, 2010, p. 350)
Como mostraremos no decorrer deste trabalho, o exercício de transver o olhar fez encontrarmos flores em rolos de papel higiênico, um ônibus em uma caixa, um pulmão num saco de ar, aviões em canetas, mantermos relação pessoal com a batata doce…
Ao falarmos de nossos espaços, quarto, janela, casa, vimos o quanto a ideia de dentro e fora é uma ilusão fabricada pela epistemologia ocidental. Sen- timos o quanto nosso espaço está dentro de nós, tanto como estamos nele. Que não há separação entre sujeito e paisagem, mas um contínuo de re- lações. Propomos algumas atividades a serem ex- perimentadas até o próximo encontro. Uma seria tirar “selfies”, fotografando o espaço da casa, já que o espaço também somos nós. E o resultado foram várias fotos: horta, plantas, cantinhos da casa, rede, varanda, janela, café. Fotos de nós mesmas através do espaço que constituímos e nos constitui.
Encontro corpo e memória
Assistimos o filme “Histórias que só existem quando lembradas” de Julia Murat 2. O filme trata das nossas
Seguindo as questões trazidas pelo filme, nos relatos das alunas apareceram muitos estranhamentos, principalmente sobre o tempo mais lento em que as coisas acontecem no filme. Assim começávamos a entrar em contato com um modo de criação associado aos tempos de infância e a momentos que sentimos passar mais devagar por estarmos tomadas por emoções diversas.
A sensibilidade do filme e a forma artística como foi apresentado também foram importantes para ingressarmos em uma estética menos pop e mais sensível em nossos encontros.
O filme traz uma fotografia mais enquadrada, cenas bem silenciosas, encontros inesperados e persona- gens bem característicos de uma pequena cidade. No encontro subsequente fizemos uma prática em que cada aluna foi convidada a trazer um objetoque estivesse associado a uma memória pessoal.
Ao compartilhar com a turma o que cada uma havia trazido, percebemos objetos e memórias semelhantes. Esses objetos foram fotografias, roupas e acessórios infantis e presentes de alguém especial, desde brinquedos até objetos decorativos.
Transver o olhar: um convite
Nesse encontro propusemos uma pesquisa a partir das manualidades. Iniciamos com uma sensibilização usando o tato, o toque da mão na mão e suas reverberações, até o momento em que nossas mãos pudessem ser outras coisas, exercitando a capacidade de transver.
Pedimos que cada aluna escolhesse um objeto para transformar, e também materiais para fazer intervenções nele.
Inspiradas pelo pintor Magritte na obra “Isso não é um cachimbo” cada uma de nós apresentava o objeto dizendo que ele não era o que parecia e sim outra coisa. De modo que um saco plástico, por exemplo, não fosse mais um saco plástico e sim um pulmão. A partir daí o convite foi intervir nesse novo objeto, de forma mais ou menos radical.
As criações desencadeadas a partir desse encontro realmente nos deslocaram. A começar por um pincel feito com uma caneta e cabelo, onde um objeto utilizado para escrever palavras entra em contato com o corpo (cabelo) e passa a produzir novas formas livres.
Uma aluna, ao se apropriar da dinâmica, transformou rolos de papel higiênico em uma flor para decorar o quarto, usando tesoura e grampeador. Um pente garfo tornou-se uma instalação, onde o aluno alinhavou questões sobre negritude, inter-seccionalidade, estética e política.
Tivemos um quadro feito com um livro de pedagogia da avó, não terminado porque no meio do processo apareceu um violão em que a aluna e o namorado desenharam e o transformaram em um objeto artístico para a parede. Outra aluna produziu um cesto usando jornal, que passou a fazer parte da decoração de seu am- biente de estudos. Ainda, uma aluna produziu uma pintura usando como tinta o sumo da amora.
O corpo das coisas
Em um dos encontros fizemos uma proposição baseada nas obras de Lygia Clark. Ela traz uma provocação muito importante para o campo da arte, torna artistas em propositores e espectadores em agentes ativos para que a obra de arte se realize. Essa provocação é de muita relevância em nosso trabalho, que busca deslocar o corpo e o olhar das professoras em formação. Onde ao se entregarem realmente à experiência seja possível que esta se realize tanto individual, quanto coletivamente.
A proposição que fizemos à turma foi inspirada tam- bém numa experiência com a artista e educadora Virna Vemvenuto e no que Clark chama de “objetos relacionais”, algo que, ao entrarmos em contato pe- los sentidos, passa de um objeto comum a um ob- jeto capaz de despertar sensações e sentimentos. Escolhemos um lençol, ou outro tecido grande, algo que tivéssemos em casa. A partir do toque fomos investigando esse objeto e nos abrindo para esse encontro. Marcella nos guiava ao som de uma música:
Pegue um tecido, lençol, canga… encontre um lugar, uma posição confortável...perceba esse tecido, como objeto, suas funções e atribuições...quando, em que lugares da casa o encontra? Que provocações em seu corpo ele produz? Quais movimentos ele sugere? Perceba outras formas de usá-lo, brinque, explore... esse tecido tem peso, cheiro, tamanho, texturas? Entre em contato com o corpo do objeto. (Fala de Marcella durante a aula)
Em seus relatos, muitas alunas nos disseram que sentiram algo como um abraço, acolhimento, maciez. Se lembraram também de brincadeiras que faziam quando crianças em que, usando o lençol, alcançavam outros mundos na imaginação.
Lab corpo palavra
No encontro seguinte fomos convidadas a partici- par da aula que a professora Olívia Von der Weid e a artista Aline Bernardi iriam realizar no curso de Antropologia. A proposta da aula era baseada no projeto de pesquisa “Lab Corpo Palavra” que Aline
Bernardi vem desenvolvendo a partir de perguntas como:
Qual a implicação do corpo durante o ato de escrever? Como posso atravessar a fronteira entre escrita e movimento, para que a poesia do corpo interfira no fluxo criativo da palavra e a palavra no fluxo poético do movimento? De que maneira “razão” e “sensibilidade” dialogam na construção do corpo-pensamento? (Bernar- di, 2019)
No semestre anterior já havíamos sido convidadas a participar de uma aula conjunta de Olivia e Aline sobre a relação entre escrita e corporalidade. E desta experiência, conforme descreveu Celia Collet (2020), surgiu o exercício de diálogo entre corpo, escrita e bordado, que pode ser novamente vivenciado neste encontro em 2020.
Nesta ocasião, ao nos depararmos com a simul- taneidade entre o movimento do corpo, a escrita convencional e a escrita com agulhas (bordado), houve muito estranhamento, pois muitas de nós estávamos seguindo um caminho mais racional, até o momento em que fomos capturadas pela fruição desejada.
Os corpos, ao fazerem as atividades concomitantemente, não podiam mais ordenálas racionalmente, e então passaram apenas a sentilas, entrando em uma experiência que acontece organicamente.
Marcella, em mais uma conexão entre práticas cor- porais e poesia acontecidas durante o curso, decla- mou sua poesia ao ser tocada por essa atividade.
Desata
Palavras de dedo para desatar o nó da garganta Escrevo como quem dança com o punho
Papel pra mim é testemunho
No descuido digo o que preciso ser Olhando as miudezas do mundo Vejo o não que afirmo no fazer
O sim pro corpo fazendo o próprio bem O sim que eu nunca disse a ninguém Aquele que só cabe a mim
O mistério que me povoa
Quão alto é o salto do eu-mulher Sustento meu teto e meu lamento Sustento os nãos que falo
Eu me coloco em risco Eu que rabisco letras Junto tinta, linha e tecido
Me sustento bem em cima dos pés que carrego Quem vem subindo encontra jardins internos de garota
Não vai embora e se alastra pelo estômago Persegue o título pra escrever sua história Eu que sustento virar a página
Sou por dentro veios de uma velha estrada (Marcella Jasmim Barcellos, p.18, 2020)
Esta prática, mesmo sendo experimentada “on-li- ne”, à distância, teve um efeito muito forte sobre as alunas, que depois o relataram em nossas con- versas no grupo de whatsapp. Falaram de envol- vimento pleno com o tecido, a linha e o papel, da excepcionalidade da vivência, da força do encontro da possibilidade de bordar o mundo.
Pesquisar é criar
O que queremos é isso, que vocês desenvolvam pesquisas em algo que foi ou está sendo despertado em nossos encontros ou que dialogam com eles.
Queridas, durante nossos encontros despertamos algumas temáticas relacionadas a arte, corpo, antropologia e educação. Deste modo,a apresentação final será algo em qualquer lin- guagem (escrita, audiovisual, gráfica, performance...) que articule o que foi despertado em você durante esse tempo. Que questão chamou mais sua atenção, em cima dela é que você vai des- envolver uma pesquisa. Pode ser algo que você já vem estudando... Qualquer dúvida pode falar conosco.
As mensagens acima tratavam, no grupo de What- sApp, sobre a proposta de pesquisa que colocamos para as alunas. Assim, cada uma delas, a partir de seus interesses e dos acontecimentos durante o curso, partiu para uma investigação pessoal em meio ao processo coletivo.
Uma aluna puxou o fio da atividade de dança com o tecido e se conectou com a leveza. O movimento do tecido no ar a levou a bordar em suas saias. Vestir a leveza, levar a leveza. Artistar seus panos como forma de ativar sua potência do leve. O fio se fez tecido, o tecido se fez educação. Ela começou a dar aulas particulares para um menino autista. E conectando nossa experiência com suas aulas, passou a criar materiais artísticos para trabalhar com ele, através do prazer e do contato com a materialidade dos corpos à sua volta. Ela conta que a dúvida que a mãe do menino tinha no início do trabalho, querendo resultados imediatos foi, aos poucos, se transformando em alegria pelas descobertas possibilitadas pelo trabalho sensível.
Outra aluna puxou uma rama da batata doce. Com a proposta de observar os espaços à sua volta, colocou-se em conexão com uma batata-doce que ela havia posto em um recipiente com água em sua janela
Inspirada pela avó, que também estava germinando uma batata-doce. A batata se tornou um ele- mento de conexão entre as duas que estavam sem se ver. Durante o curso ela seguiu com Doralice, o nome que deu à batata, entrando em contato com o cuidar, o conhecimento, o corpo, através desta relação. Registrou seu crescimento em fotos, e segundo ela, renasceu com o renascimento de Doralice.
Leila Alvarenga, em sua pesquisa, transformou nos- so corpo coletivo em literatura de cordel:
Bordadeiras em Flor
(Leila Alvarenga)
Olhe bem, essa menina! Tenho algo a lhe dizer Nos encontros, as palavras, olhos acesos, aber- tos,
Diferentes rostos, diferentes corpos,
O encontro virtual (frenesi tecnológico), virou partilha de afetos
Nestes dias tão custosos, de afastamento e so- lidão,
encontrei nesta tabula imperfeita
Um cantinho de doçura, de afável fruição
Sob a batuta de Celia e Marcella, Falas, sorrisos, danças, movimento O que tava esquecido num canto
Foi repensado, refeito com sentimento
Refazer, repensar, o que está posto
Pois te digo, isto é antropologia através do cor- po!
Um dia era, então, o bordado
Bordar o mundo, bordar tudo, bordar junto. Parece loucura, doidice mesmo!
Mas foram horas de calma,
Teve simples movimento, teve mulher-mãe e seu rebento
Brincando, bordando no preparo do alimento Nestes dias tão confusos, Criamos, construímos um laço, um abraço, um arco florido
que fez florescer, nas conversas, nas leituras, nas trocas ,os sorrisos,
No toque das folhas, no regar
matinal, bordei traços de chuva ,
Escavando a terra ,suavizei humores , espantei as dores,
Sob meu olhar espectral
Minhas mãos retintas, cor de terra, como as da mãe, aqui está minha herança ancestral!
Bordado diferente, inusitado
Bordar pano, papel, corpo, sensação
Que tarefa bonita! Traçados cheios de vida! Que tira a gente do marasmo, reacende a ins- piração
Que tava ali quietinha, escondida, esperando
um não- sei -o -que de emoção
Pra acordar, respirar, e lá vamos nós de novo... recomeçar!
Uma de nossas alunas, que também é mãe, participou da maioria dos encontros com os dois filhos sempre por perto. Essa proximidade das crianças com nosso grupo fez com que ela escolhesse incluílos em sua pesquisa. Seu processo culminou na gravação de um vídeo da confecção de um bolo junto com eles, algo que ela já vinha praticando em casa. Antes de fazer o bolo ela preparou o espaço de modo que as crianças pudessem ter acesso a todo material, ganhando autonomia. O que chamou atenção foi a subversão por parte das crianças no ato, comendo ingredientes, misturando outros. O bolo, ora planejado pela mãe com a receita, se tornou outro bolo na experiência conjunta dos filhos de 5 e 2 anos.
Arte de fiar gente à distância
A proposta do curso era fazermos um percurso cole- tivo, ao mesmo tempo que os projetos individuais.
O processo coletivo foi se realizando nos encontros das aulas síncronas, e nas trocas de mensagens e fotos pelo WhatsApp sobre nossas experiências entre os encontros. Percebemos que a conexão entre o grupo, e de cada uma com a experimentação foi crescendo com o tempo. Começamos com um grupo de alunas que não se conheciam, e depois fomos formando um corpo coletivo.
Referências
Licencia
Esta obra está bajo una licencia internacional Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivadas 4.0.